Chuva de sapos: uma reflexão sobre o filme Magnólia
CLAUDIA PERROTTA
“Nesse grande jogo que é a vida, não importa o que você espera, o que você merece, mas o que você alcança. Para isso, é preciso estabelecer metas!”. Essa é a ideologia de Frank Mackey, criador do “Seduza e destrua”, vídeo que tem como objetivo orientar os “machos” como ele a transformar pacatas damas em escravas sexuais:“Respeitem o pênis e domem a vagina! Homens nasceram para comandar: é biológico, antropológico e animal”. Mackey reza, assim, pela cartilha da sociedade ultraconsumista norte-americana: o que importa é parecer, e não ser. Ser é coisa do passado humanista. Homens, portanto, não choram... Não? Mas, veja, é o mesmo Frank Mackey que termina no leito de morte do pai, implorando para que viva, chorando copiosamente. O pai que o havia abandonado ainda criança, juntamente com a esposa doente. O filho, na época com apenas 14 anos, viu-se sozinho, tendo de cuidar da mãe. Difícil perdoar...
Mas, afinal, do que trata o filme Magnólia? Doenças incuráveis e consideradas psicossomáticas, como o câncer? De fato, além da mãe e do pai de Frank, também um outro personagem sofre da mesma doença: Jimmy Gator, astro da indústria cultural que, assim como Frank, exerce domínio sobre o público, impondo-lhe a mesma ideologia: em um Quiz Kid típico, líder de audiência há mais de 30 anos, crianças geniais respondem perguntas; tornam-se, assim, brinquedos engraçadinhos nas mãos de adultos, especialmente de seus pais, que as usam para alcançar certo status, poder, e muito dinheiro.
As semelhanças não param por aí. Jimmy Gator tem também em comum com o pai de Frank Mackey o fato de ser o produtor do Quiz Kid e de ter protagonizado um ato de violência contra sua filha: abusou sexualmente da menina, que tornou-se então viciada em cocaína. Coincidência? Para Frank Mackey sim, pois os pais não são responsáveis: “Não vou me desculpar por ser quem eu sou! Sou aquilo que acredito ser. Ficar encarando o passado é não progredir, a coisa mais inútil é o que está atrás de mim!”, afirma contundente, do alto de seu poder que, até então, parecia-lhe inabalável.
Águas passadas não movem moinhos... a imagem é bonita, mas carece de verdade. Talvez Magnólia, contrariando essa máxima, trate justamente disso. Passado. Mais precisamente: violências cometidas por pais contra seus filhos gerando adultos perdidos, desesperançados, despedaçados. Esse é o denominador comum. E quem faz a denúncia no filme são, justamente, os garotos inteligentes do programa de Jimmy Gator.
Um deles foi, no passado, um dos meninos geniais a se apresentar e ganhar fama no Quiz Kid, mas, no presente, tornou-se, apenas, um adulto medíocre, confuso, eternamente submisso, implorando atenção, consideração, para sempre amarrado à identidade de criança que faz graça para os adultos: “Você era uma gracinha naquele programa!”, sem conseguir se livrar do sistema de barganha em que foi criado: “se você fizer tudo direitinho, te dou o que você quiser!”. Ele diz: “a vida foi tirada de mim, tenho amor para dar, mas não sei como!”.
O outro personagem que tem como função denunciar toda essa hipocrisia é o menino genial da atualidade. O programa medíocre continua, entretendo inúmeros telespectadores. Mas o menino resiste, implora para que a vida não lhe seja tirada. Numa cena do filme, ele é pressionado por todos para que responda às perguntas feitas por um Jimmy Gator já cansado de tanta mesmice. O menino, então, corajosamente, diz: não mais. Com as calças molhadas do xixi que foi impedido de fazer, pois o show jamais pára por razão tão prosaica e trivial, enfrenta a obsessão do pai que quer transformá-lo em astro mirim, a ridicularização de seus colegas de programa, e grita para a plateia submetida à lavagem cerebral midiática: “Isto não é engraçado!”.
Não, de fato, não é, os pecados dos pais recaindo sobre os filhos... (citação literal de um episódio bíblico, Êxodo, vers. 25) Isso nunca vai acabar? O que fazer? Simplesmente desistir?
Bem, mas há anjos no filme. Anjos-terapeutas? Escutam, não julgam, não interpretam, mas têm palavras acolhedoras, ou por vezes apenas testemunham tamanho sofrimento. O policial religioso e ingênuo, que só quer fazer seu trabalho direito, fazer o bem, não fazer mal a ninguém, salvar as pessoas. Num encontro inusitado com a mulher violentada na infância pelo pai astro de TV, apaixona-se e propõe aceitá-la como ela é - amor incondicional que faltou na infância. O enfermeiro que se dedica de corpo e alma ao pai de Frank Mackey, disposto a sofrer pela dor alheia sem nada pedir em troca. Acolhe, liga aqueles fragmentos de pessoas, possibilita o encontro final do pai, arrependido por ter perdido as duas únicas pessoas que teve na vida, com o filho que se esconde na máscara de macho adulto branco, super dotado, sempre no comando. E o menino rapper, que se autodenomina profeta e que salva a nova mulher do pai de Frank Mackey, que tenta se matar, culpada por tê-lo traído a vida toda.
Há, ainda, as tentativas de reparação, mesmo que tardias, quando as células cancerosas já atingiram seu ápice e não têm mais volta.
Mas o que nos redime mesmo em Magnólia é a bizarra e, por que não, bendita chuva de sapos, referência explícita a outro versículo de Êxodo (8:2, por sinal, esse número aparece várias vezes no decorrer do filme. Mas é bom lembrar também que sapos são símbolos de bem-aventurança na cultura oriental...). É uma coisa que acontece e que iguala a todos. Heróis e bandidos, algozes e vítimas. É um denominador comum que torna todos mais amáveis, talvez por que impotentes diante de uma força absolutamente exterior a eles, mais violenta do que a turbulência que vivem internamente. Depois da chuva, arrependem-se, assumem seus erros, com certa disposição para perdoar, parte mais difícil do trabalho do ser humano. Começam, então, a encontrar formas de não desistir. “Pai”, pede o pequeno gênio do programa de TV, “você precisa ser mais legal comigo”.
Todos os pais precisam.
O filme termina com um sorriso de esperança, ainda que bem de leve, estampado no rosto sofrido da menina violentada pelo pai. Se até ela pode sorrir, certamente, nós também ainda podemos.
Em tempo: logo no início do filme, depois de uma introdução instigante que finaliza com o episódio de um filho “coincidentemente” assassinado pela mãe e com a frase: “não é simplesmente algo que aconteceu, não foi uma mera coincidência”, vamos sendo apresentados aos personagens das histórias através de propagandas na TV. Frank Mackey, a moça drogada, Jimmy Gator, o menino genial. Prestem atenção: a primeira resposta deste a uma pergunta do programa é: Winnicott. Teria sido uma mera coincidência?
Seguem dois links bem legais: o primeiro traz uma leitura instigante sobre o cartaz do filme, e o segundo, a canção que antecede a chuva de sapos:
http://www.designgrafico.art.br/comapalavra/magnolia.htm
http://www.youtube.com/watch?v=zbxyOOrHIXg
CLAUDIA PERROTTA
“Nesse grande jogo que é a vida, não importa o que você espera, o que você merece, mas o que você alcança. Para isso, é preciso estabelecer metas!”. Essa é a ideologia de Frank Mackey, criador do “Seduza e destrua”, vídeo que tem como objetivo orientar os “machos” como ele a transformar pacatas damas em escravas sexuais:“Respeitem o pênis e domem a vagina! Homens nasceram para comandar: é biológico, antropológico e animal”. Mackey reza, assim, pela cartilha da sociedade ultraconsumista norte-americana: o que importa é parecer, e não ser. Ser é coisa do passado humanista. Homens, portanto, não choram... Não? Mas, veja, é o mesmo Frank Mackey que termina no leito de morte do pai, implorando para que viva, chorando copiosamente. O pai que o havia abandonado ainda criança, juntamente com a esposa doente. O filho, na época com apenas 14 anos, viu-se sozinho, tendo de cuidar da mãe. Difícil perdoar...
Mas, afinal, do que trata o filme Magnólia? Doenças incuráveis e consideradas psicossomáticas, como o câncer? De fato, além da mãe e do pai de Frank, também um outro personagem sofre da mesma doença: Jimmy Gator, astro da indústria cultural que, assim como Frank, exerce domínio sobre o público, impondo-lhe a mesma ideologia: em um Quiz Kid típico, líder de audiência há mais de 30 anos, crianças geniais respondem perguntas; tornam-se, assim, brinquedos engraçadinhos nas mãos de adultos, especialmente de seus pais, que as usam para alcançar certo status, poder, e muito dinheiro.
As semelhanças não param por aí. Jimmy Gator tem também em comum com o pai de Frank Mackey o fato de ser o produtor do Quiz Kid e de ter protagonizado um ato de violência contra sua filha: abusou sexualmente da menina, que tornou-se então viciada em cocaína. Coincidência? Para Frank Mackey sim, pois os pais não são responsáveis: “Não vou me desculpar por ser quem eu sou! Sou aquilo que acredito ser. Ficar encarando o passado é não progredir, a coisa mais inútil é o que está atrás de mim!”, afirma contundente, do alto de seu poder que, até então, parecia-lhe inabalável.
Águas passadas não movem moinhos... a imagem é bonita, mas carece de verdade. Talvez Magnólia, contrariando essa máxima, trate justamente disso. Passado. Mais precisamente: violências cometidas por pais contra seus filhos gerando adultos perdidos, desesperançados, despedaçados. Esse é o denominador comum. E quem faz a denúncia no filme são, justamente, os garotos inteligentes do programa de Jimmy Gator.
Um deles foi, no passado, um dos meninos geniais a se apresentar e ganhar fama no Quiz Kid, mas, no presente, tornou-se, apenas, um adulto medíocre, confuso, eternamente submisso, implorando atenção, consideração, para sempre amarrado à identidade de criança que faz graça para os adultos: “Você era uma gracinha naquele programa!”, sem conseguir se livrar do sistema de barganha em que foi criado: “se você fizer tudo direitinho, te dou o que você quiser!”. Ele diz: “a vida foi tirada de mim, tenho amor para dar, mas não sei como!”.
O outro personagem que tem como função denunciar toda essa hipocrisia é o menino genial da atualidade. O programa medíocre continua, entretendo inúmeros telespectadores. Mas o menino resiste, implora para que a vida não lhe seja tirada. Numa cena do filme, ele é pressionado por todos para que responda às perguntas feitas por um Jimmy Gator já cansado de tanta mesmice. O menino, então, corajosamente, diz: não mais. Com as calças molhadas do xixi que foi impedido de fazer, pois o show jamais pára por razão tão prosaica e trivial, enfrenta a obsessão do pai que quer transformá-lo em astro mirim, a ridicularização de seus colegas de programa, e grita para a plateia submetida à lavagem cerebral midiática: “Isto não é engraçado!”.
Não, de fato, não é, os pecados dos pais recaindo sobre os filhos... (citação literal de um episódio bíblico, Êxodo, vers. 25) Isso nunca vai acabar? O que fazer? Simplesmente desistir?
Bem, mas há anjos no filme. Anjos-terapeutas? Escutam, não julgam, não interpretam, mas têm palavras acolhedoras, ou por vezes apenas testemunham tamanho sofrimento. O policial religioso e ingênuo, que só quer fazer seu trabalho direito, fazer o bem, não fazer mal a ninguém, salvar as pessoas. Num encontro inusitado com a mulher violentada na infância pelo pai astro de TV, apaixona-se e propõe aceitá-la como ela é - amor incondicional que faltou na infância. O enfermeiro que se dedica de corpo e alma ao pai de Frank Mackey, disposto a sofrer pela dor alheia sem nada pedir em troca. Acolhe, liga aqueles fragmentos de pessoas, possibilita o encontro final do pai, arrependido por ter perdido as duas únicas pessoas que teve na vida, com o filho que se esconde na máscara de macho adulto branco, super dotado, sempre no comando. E o menino rapper, que se autodenomina profeta e que salva a nova mulher do pai de Frank Mackey, que tenta se matar, culpada por tê-lo traído a vida toda.
Há, ainda, as tentativas de reparação, mesmo que tardias, quando as células cancerosas já atingiram seu ápice e não têm mais volta.
Mas o que nos redime mesmo em Magnólia é a bizarra e, por que não, bendita chuva de sapos, referência explícita a outro versículo de Êxodo (8:2, por sinal, esse número aparece várias vezes no decorrer do filme. Mas é bom lembrar também que sapos são símbolos de bem-aventurança na cultura oriental...). É uma coisa que acontece e que iguala a todos. Heróis e bandidos, algozes e vítimas. É um denominador comum que torna todos mais amáveis, talvez por que impotentes diante de uma força absolutamente exterior a eles, mais violenta do que a turbulência que vivem internamente. Depois da chuva, arrependem-se, assumem seus erros, com certa disposição para perdoar, parte mais difícil do trabalho do ser humano. Começam, então, a encontrar formas de não desistir. “Pai”, pede o pequeno gênio do programa de TV, “você precisa ser mais legal comigo”.
Todos os pais precisam.
O filme termina com um sorriso de esperança, ainda que bem de leve, estampado no rosto sofrido da menina violentada pelo pai. Se até ela pode sorrir, certamente, nós também ainda podemos.
Em tempo: logo no início do filme, depois de uma introdução instigante que finaliza com o episódio de um filho “coincidentemente” assassinado pela mãe e com a frase: “não é simplesmente algo que aconteceu, não foi uma mera coincidência”, vamos sendo apresentados aos personagens das histórias através de propagandas na TV. Frank Mackey, a moça drogada, Jimmy Gator, o menino genial. Prestem atenção: a primeira resposta deste a uma pergunta do programa é: Winnicott. Teria sido uma mera coincidência?
Seguem dois links bem legais: o primeiro traz uma leitura instigante sobre o cartaz do filme, e o segundo, a canção que antecede a chuva de sapos:
http://www.designgrafico.art.br/comapalavra/magnolia.htm
http://www.youtube.com/watch?v=zbxyOOrHIXg